SOBRE A OBRA

Entre o Plano e o Espaço 

Para Lauro Müller pintura é essencialmente cor. Entretanto considerar o cromatismo um traço essencial dessa arte não é uma questão restrita à obra de Müller. Artistas, como Matisse e Hélio Oiticica, também centrados na cor, percorreram caminhos bastante diversos. A experiência e a reflexão suscitadas pelo trabalho de Oiticica, por exemplo, levaram-no à uma conclusão . Se a cor era o único elemento permanente da pintura, ela poderia existir sem o quadro, isto é, fora dele. Para preservá-la, Hélio rompeu com um tipo de espaço, o da bidimensionalidade, e passou a estruturá-la no próprio espaço real. 

Entretanto muitas décadas separam as obras de Hélio e Lauro. Muitas mais separam-nas do Fauvismo de Matisse. Atualmente, no caso de meios ancestrais como a pintura, impõe-se, uma vez mais (1), uma questão recorrente desde o século XIX: para que, o que, e como pintar? Questão que deve ser respondida já que cada artista contemporâneo deve justificar, o sentido e a razão de ser de seu próprio trabalho (2) e um número considerável deles  vivem a pintura como uma necessidade, razão suficiente para justificá-la e atribuir-lhe um sentido contemporâneo. Dentro desse registro devemos situar a obra de  Lauro Müller. Mas faz-se necessário um breve recuo histórico. 

Alguns dos principais expoentes do modernismo comungavam com outros artistas a filiação aos mesmos princípios formais. Os ismos lhes permitiam construir ou demolir o plano pictórico, separar na escultura o volume da massa, como propuseram Gabo e Pevsner, e contrapor tantas outras proposições visualmente palpáveis. A legitimação de poéticas individuais a partir de sua ligação com projetos artísticos coletivos, ainda que quase sempre restrita a pequenos grupos (história), teve nos ismos o principal fio condutor do sentido e do caráter eminentemente formal (espacial, cromático matérico, construtivo , abstrato, etc.) da arte moderna.

Há quatro ou cinco décadas os ismos começaram a afastar-se dos valores formais e plásticos (estéticos), e a propor questões ( éticas e políticas, por exemplo) situadas além desses repertórios. Desde então, o interesse estrito pelo caráter objetivo da forma, foi substituído por um crescente interesse pela imagem, que eminentemente simbólica, seria incapaz de permitir algo comparável à objetividade formalizada dos ismos. O afastamento da esfera plástica, entretanto, facilitou a coexistência de uma pluralidade de meios novos técnicos, tais como a fotografia, o Cinema e o vídeo, com aqueles tradicionais, como, por exemplo, a pintura. Esse afrouxamento dos padrões plásticos tornou também possível usar, de acordo com as expectativas poéticas de cada artista, quaisquer materiais e suportes, sobretudo os não convencionais. 

Inicialmente concebida como uma janela, já que enquadrava a representação do mundo tridimensional no plano (século XV), a tela, foi preservada pelo Modernismo, graças à sua reorientação funcional:  deixou de ser pensada a partir da idéia de enquadramento (de uma cena) para tornar-se o suporte objetivo da invenção  de formas, cores, gestos, texturas e matérias. Chegou praticamente intacta ao universo contemporâneo e ainda hoje é tomada por alguns enquanto natural e única, tanto quando tratamos de imagens, quanto quando pensamos na construção de formas no plano. Tornou-se, por isso mesmo, uma questão relevante para o futuro imediato das artes visuais. 

A obra de Lauro Müller procura reavaliar o sentido da pintura, por meio de um método bastante pessoal: criar cor e luz fora do plano, mas ainda dentro dos limites quadro (limites não apenas físicos mas técnicos e artesanais). Todas as pinturas recentes do artista, feitas com tinta acrílica cortada, indicam, já nos títulos, seu trânsito entre os momentos decisivos da história da tela e do quadro (que coincidem com a história da própria pintura nos últimos seiscentos anos): sob o título geral Pintura Abstrata, expressão da autonomia do plástico em relação à natureza, Müller especifica cada um de seus quadros com subtítulos que evocam situações figurativas: Jardins, Laranja/Limão, Amazonas 4, Cascata, Cascatinhas, Jardim 3, etc.

Lauro corta em tiras telas por ele previamente pintadas. Sobre um fundo de cor intensa pinta linhas grossas e curvas criando, assim, telas para serem desmontadas pelo recorte. A desconstrução da superfície unitária do suporte é não só um método de trabalho, como também uma intervenção simbólica que procura responder à necessidade contemporânea de redefinir as funções históricas (Renascentista e Modernista) da pintura e do quadro.  

Tanto a janela renascentista, quanto a cortina modernista (cf. Clement Greenberg) preservaram a integridade material do plano pictórico. As pinturas de Müller, inversamente, destroem o plano, por meio do recorte, mas preservam o suporte (o quadro), reconstruído com as tiras da pintura inicial. Esses procedimentos indicam-nos que, para Lauro, a reorientação da pintura passa por sua expansão para o espaço real, sem, contudo romper com o quadro.

 Suas obras sugerem uma dissolvência iminente. Se primeira etapa do trabalho, convencionalmente pictórica, resulta de pinceladas lisas e cores chapadas, as etapas intermediárias (destruição do gesto pictórico pela fragmentação do recorte) e conclusivas (montagem do quadro por meio da aglomeração das tiras) produzem situações tonais opostas aos resultados iniciais. Qual raios oscilantes, as tiras de cor criam um emaranhado de cores e tons que se entrelaçam e pendem para além dos limites laterais e inferiores do quadro. 

O método pictórico inventado pelo artista instaura uma espacialidade híbrida, tipicamente contemporânea. Espacialidade que constitui, entre o plano convencional do quadro e o espaço real, um campo de trabalho singular e a esfera semântica de sua poética. 

Fernando Cocchiarele                                                                                                                                                                                                                                            Curador do Museu de Arte Moderna (MAM)                                                                                                                                                                                     Rio de Janeiro

-   Notas: 

(1) trata-se aqui do tema da morte da pintura cuja recorrência vem sendo freqüente desde o século XIX.                                                                                                                                      

(2) questão diversa daquela colocada por Clemente Greenberg que procurou mostrar que o sentido e a razão de ser da pintura modernista residia na autocrítica, isto é, a pintura tinha que justificar com os próprios meios que a experiência que representava era insubstituível por qualquer outra. Seu desaparecimento implicaria na perda cultural irreversível desta experiência.

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